domingo, 15 de junho de 2008

Helena de Darwin

Reinaldo José Lopes*
Historiadores e críticos literários normalmente dão uma risadinha de desprezo quando alguém diz que a guerra de Tróia aconteceu por causa da bela Helena. Quem estuda o conflito, que virou a mais famosa saga da literatura ocidental ao ser cantado pelo poeta Homero, costuma partir do princípio de que o rapto de Helena não passa de desculpa esfarrapada.

Recapitulemos muito rapidamente a origem do conflito, segundo a mitologia grega e os textos homéricos. A briga toda teria começado quando a grega Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, é seduzida – ou carregada à força – pelo príncipe troiano Páris (retratado com sua amada no quadro acima, do pintor francês Jacques-Louis David).

O casal foge para Tróia e, quando o marido corneado não recebe de volta a esposa depois de negociações diplomáticas, o tempo fecha. Menelau convoca seu irmão Agamêmnon, o rei mais poderoso da Grécia, e todos os antigos pretendentes de Helena, unidos por um juramento, para atacar Tróia. Depois de dez anos, a cidade é tomada, saqueada e destruída, os homens troianos são massacrados e as mulheres e meninas viram escravas e concubinas dos vencedores.

As análises modernas afirmam que tudo isso é balela. Os gregos queriam mesmo era controlar as rotas de comércio da região de Tróia (versão dos historiadores) ou aproveitar o pretexto para ganhar glória imortal nos combates (versão mais romântica, defendida pelos críticos literários). Um livro que acaba de ser lançado nos Estados Unidos, porém, diz que as duas explicações não chegam nem perto da raiz da questão. E afirma que o estopim da pancadaria em Tróia foi mesmo Helena – sem falar, é claro, nas inúmeras outras mulheres jovens e atraentes que viviam na cidade. Segundo a nova tese, a motivação dos gregos era igualzinha à de uma coalizão de chimpanzés machos: obter novas fêmeas a todo custo.

A tese, que casa a poesia de Homero com algumas das teses mais recentes sobre a origem evolutiva da guerra e do comportamento violento, é de Jonathan Gottschall, professor de literatura do Washington & Jefferson College (EUA). Ele é o autor de The Rape of Troy: Evolution, Violence and the World of Homer (O Estupro de Tróia: Evolução, Violência e o Mundo de Homero). Gottschall diz que sua intenção não é simplesmente jogar no lixo os milênios de estudos sobre as obras-primas gregas, nem desdizer as outras explicações sobre o comportamento dos heróis de Homero, como a idéia de que eles lutam para eternizar sua fama.

“As pessoas acham que Aquiles [o principal herói grego da guerra] tem como objetivo a glória eterna simplesmente porque ele diz isso”, explicou-me Gottschall em conversa por telefone. “Todos nós queremos esse tipo de glória – quem não gostaria de ganhar um Nobel e ser lembrado daqui a cem anos? A questão é que nós buscamos ter fama, ou ter um status profissional elevado, porque isso nos garante o acesso a uma série de recursos. E esses recursos, em última instância, servem para turbinar as chances de sobrevivência e reprodução, como em qualquer outra espécie.”

Refinamento zero

Se esse papo todo está soando meio primitivo demais, é porque talvez o mundo de Homero fosse bastante tosco mesmo. A maioria dos especialistas atuais concorda que os dois poemas do grego – a Ilíada, que conta a fase crucial da guerra, e a Odisséia, sobre a volta para casa do herói Ulisses – foram compostos por volta do ano 800 a.C. Já os dados arqueológicos indicam que a antiga Tróia, localizada no noroeste da Turquia de hoje, teria sido detonada bem antes, em torno de 1200 a.C.

A diferença é importante porque, quando Tróia ainda estava de pé, a Grécia era dominada por uma série de palácios luxuosos, com governo burocrático, centralizado e “globalizado”, comerciando com o Egito e a Palestina. Esses reinos palacianos foram arrasados por invasores pouco depois da queda de Tróia, de forma que, quatrocentos anos depois dessa catástrofe, os gregos ainda viviam em vilarejos rurais, empobrecidos e analfabetos.

Gottschall e outros especialistas propõem que a sociedade da Ilíada e da Odisséia reflete justamente esse período pobretão da história grega, próximo da época em que os poemas ganharam sua forma final. “É claro que há elementos de épocas mais antigas na trama, como o uso de armas de bronze, enquanto na época de Homero todo mundo já tinha armas de ferro. Mas esses elementos provavelmente foram preservados porque faziam parte das fórmulas da tradição oral herdada pelo poeta”, argumenta ele. O importante é, que no geral, a vida dos heróis homéricos é um perrengue de lascar. Para se ter uma idéia, Homero diz, como quem não quer nada, que porcos e ovelhas ficam passeando nos palácios, e que as rainhas vão pessoalmente buscar água na bica e fiar a roupa de seus maridos. De quebra, os reis são relativamente pouco poderosos e raramente conseguem deixar o poder para seus filhos sem algum grau de luta. Nada disso parece ter acontecido nos reinos de 1200 a.C.

Mulheres em falta

Resumindo, tal quadro significa que a sociedade homérica era tribal, muito pouco diferente da dos índios ianomâmis ou dos nativos de Papua-Nova Guiné. Estamos falando de pequenos grupos, liderados por chefes guerreiros e em conflito constante com os vizinhos. E qual a causa mais comum de briga interna e externa nesse tipo de sociedade? Acertou quem disse “mulheres”. Os dados recolhidos por antropólogos em grande parte dos povos tradicionais ao redor do mundo, seja na África, na Oceania ou entre os indígenas da América do Sul, mostram a prevalência endêmica dos conflitos envolvendo o rapto de mulheres.

É simples assim: os chefes mais poderosos, com maior habilidade militar e maior número de guerreiros à sua disposição, são quase sempre os que possuem o maior número de esposas e concubinas. Aqui entra com força o pedaço darwinista da argumentação de Gottschall: com mais mulheres na mão do chefão, maior a chance de ele deixar uma família numerosa e poderosa – exatamente o maior prêmio que a evolução pode conceder a um ser vivo.

Mas há um porém: para ganhar a disputa, cada grupo precisa da máxima quantidade possível de guerreiros – do sexo masculino, claro. O problema é que nasce sempre mais ou menos o mesmo número de meninos e meninas. A solução? Infanticídio. Gottschall lembra que a morte seletiva de menininhas parece ter sido comum durante toda a história grega (e em uma série de outras sociedades tradicionais guerreiras).

O resultado de tudo isso só pode ser classificado como explosivo: uma falta endêmica de mulheres (por causa do infanticídio feminino e do monopólio das esposas na mão dos chefes) e um excesso de guerreiros jovens, loucos para “capturar” suas próprias esposas e concubinas. A única “solução” é mais guerra com os grupos vizinhos, o que vai tornando o ciclo de violência cada vez pior.

Todo esse quadro casa um bocado bem com a história de vida de inúmeras mulheres – e homens – envolvidos na guerra de Tróia. Boa parte dos chefes gregos e troianos tem como esposa ou concubina uma ex-cativa capturada de alguma cidade inimiga. E, quando Agamêmnon, o líder do exército grego, resolve tomar para si a escrava preferida de Aquiles, o tempo fecha de tal maneira que o maior herói grego quase faz as malas e vai para casa.

É importante lembrar que fenômenos assim estão bem documentados entre espécies de mamíferos cujos machos, por seu tamanho e ferocidade (os equivalentes do poderio militar homérico), conseguem controlar um grande número de fêmeas, formando haréns. É o caso de elefantes-marinhos ou gorilas, por exemplo. O grande diferencial homérico – e humano, se pensarmos em termos mais gerais – é a capacidade de formar coalizões entre grandes grupos de machos aparentados e até não-aparentados, o que pode levar ao surgimento da guerra em larga escala.

As mulheres contra-atacam

Nada disso significa, porém, que as mulheres gregas e troianas se deixassem levar como meros joguetes do destino. O exemplo mais gritante do contra-ataque feminino envolve Clitemnestra, irmão de Helena e esposa do rei Agamêmnon. Enquanto o monarca grego está longe de casa, ela toma como amante outro homem e arquiteta o assassinato do marido – e da jovem e bela princesa troiana Cassandra, que Agamêmnon tinha transformado em sua concubina e já tinha até dado à luz um filho dele. Helena, por sua vez, usa seus encantos de tal forma que não apenas é poupada por Menelau, mas volta ao trono como rainha, vivendo ao lado dele pelo resto de seus dias.

Você deve estar lembrado, no entanto, que a guerra de Tróia comprovada pela arqueologia aconteceu muito antes da época em que os gregos estavam organizados socialmente como os ianomâmis. Será que isso quer dizer que o lado mais brutalmente darwinista dos poemas retrata apenas a sociedade de Homero, mas não o que aconteceu na Turquia em 1200 a.C.?

Talvez não. Uma das idéias mais debatidas dos últimos anos envolve a idéia de que Tróia, bem como outros palácios brutalmente destruídos ao redor do Mediterrâneo na mesma época, teriam sido arrasados por tribos de bárbaros, oriundas das beiradas do mundo civilizado de então. Nesse caso, o ataque teria sido realizado não pelos gregos dos palácios, como Micenas, mas sim do norte da Grécia – o que indicaria uma civilização mais primitiva, e mais inclinada a simplesmente saquear e destruir a cidade asiática, levando as mulheres como parte do butim.

A tese de Gottschall ainda deve gerar muito debate, mas talvez seja bom prestar atenção em outra das falas de Aquiles na Ilíada: “Passei muitas noites insones e dias sangrentos na batalha, lutando com outros homens por suas mulheres”.

*Repórter da editoria de Saúde e Ciência do G1 e escreve na coluna Visões da vida.

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