Secretaria de Saúde quer agentes fazendo novamente captura do mosquito da malária. Prática ocorre em outras áreas da Amazônia.
BRASÍLIA — A partir de segunda-feira, 28, todos os agentes de endemias que atuam no Juruá, no Acre, terão de reiniciar a coleta de Anopheles, o mosquito transmissor da malária. Caso não o façam, poderão ser demitidos sumariamente. A determinação foi expedida nesta quarta-feira pela Secretaria de Saúde do Acre, segundo denúncia feita por um grupo de agentes à Associação Brasileira de Proteção aos Sujeitos da Pesquisa Clínica (Abraspec).
A decisão viola a Resolução 357, do Conselho Nacional de Saúde, que proíbe
a utilização de iscas humanas na captura de mosquitos da malária, e os preceitos legais Resolução nº 196/1996 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (Conep). Tal prática viola, também, a nova Resolução RDC 39, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que proíbe pesquisas epidemiológias e observacionais sem a devida aprovação dos órgãos reguladores específicos: a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN).
Em depoimentos este mês à PF, agentes confirmam que ficavam entre seis e 12 horas com o corpo nu exposto às picadas dos mosquitos. Cada um deles recebia em média 300 picadas diárias. Eles confirmaram ainda à PF terem contraído malárias seguidas. Marcílio da Silva Ferreira é um desses. Pegou 12 malárias. Mesmo assim, Ferreira foi forçado a continuar trabalhando.
A ordem da Secretaria de Saúde obriga que, mesmo o caso sob investigação, os agentes voltem à prática de ‘iscas humanas’ de forma a permitir a continuidade das pesquisas da malária no Acre. O objetivo da pesquisa é garantir o seqüenciamento genético do genoma do mosquito Anopheles, transmissor da doença.
Para Jardson Bezerra, a imposição do governo do Acre se constitui afronta ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal. Os dois órgãos investigam o caso.
“Mais uma irresponsabilidade”
Para obrigá-los a reiniciar a captura, a Secretaria de Saúde utilizou um preposto para ler um documento supostamente emitido pelo Ministério da Saúde. Segundo a Abraspec, o tal documento insinua que a prática de isca humana é normal e seria autorizada pelo ministério.
Além da malária, os agentes estão na iminência de contraírem hepatite e a Aids, uma vez que eles são obrigados a reutilizar lâminas de coleta de sangue. E a confirmação vem de Simone Daniel. Em conversas gravadas pelos agentes, ela confessa que não há nenhum método de esterilização no reaproveitamento da vidraria laboratorial. A prática viola as determinações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e expõe os agentes aos riscos da contaminação. A Agência Amazônia possui documentos de que um agente morreu vítima de hepatite após manusear lâminas reutilizáveis.
“É mais uma irresponsabilidade”, reagiu Jardson Bezerra, indignado Ao permitir o retorno dos experimentos com “cobaias humanas”, a Secretaria de Saúde viola frontalmente os direitos difusos. “Essa é uma prática é perversa; mortal, e que, ao longo dos anos, levou muitas pessoas a se dedicarem dias e noites — dando o próprio sangue — na busca da cura de um flagelo do Brasil e do mundo: a malária”.
O uso das cobaias humanas, normal para muitos, é uma atividade desumana e, nos últimos anos, levou centenas de pessoas à morte, inclusive na Amazônia brasileira.
Combate à malária
Bezerra esclarece, por sua vez, que a entidade a qual dirige, a Abraspec, nunca pedira (e nem pedirá) a suspensão das ações de combate à malária na Amazônia. O pedido, segundo ele, é tão somente no sentido de que todo o combate atenda aos princípios de dignidade da pessoa humana e os seres humanos não sejam submetidos a procedimentos degradantes.
Segundo o advogado, a tese utilizada há dois meses em nota técnica da Secretaria Saúde do Acre, o discurso do senador Tião Viana (PT-AC) e a nota técnica do Ministério da Saúde — e adotada como fundamentos que encerrou, sem julgamento do mérito, a Ação Civil Pública impetrada pela Abraspec — não tem qualquer sentido. Em uma das notas, a assinada por José Lázaro de Brito Ladislau, coordenador do Programa Nacional de Controle da Malária, justifica-se que não há, no Acre, pesquisas científicas com uso de ‘cobaias humanas’.
Porém, a realidade é bem outra. Declarações da Gerência de Vigilância Ambiental no Vale do Juruá — o órgão é vinculado ao Departamento de Ações Básicas de Saúde (Dabs), da Secretaria de Saúde — desmontam tal versão. Um documento assinado por Cláudio Rodrigues de Souza e Márcio Sales Uchoa é esclarecedor. Diz textualmente que agentes de saúde participam de pesquisas científicas na área urbana e rural desde 17 de agosto de 2004.
Governo tenta enganar
As notas afirmam, de maneira categórica, que tais pesquisas seguiam estritamente as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e que por isso não havia irregularidades nos procedimentos adotados e que tudo era normal. “Na verdade, tudo pura falácia”, diz Jardson Barbosa. “Os governos do Acre e o federal, este por omissão, transgrediram todas as leis, resoluções e tratados internacionais que tratam da dignidade da pessoa humana e que está estampado na Constituição Federal brasileira no artigo 1º inciso III”.
As pesquisas cujo início das atividades tenha ocorrido antes das devidas aprovações sanitárias e/ou éticas passaram a ser tipificadas como infração sanitária gravíssima e o não cumprimento do disposto nesta Resolução da Anvisa RDC nº 39 implica em crime sanitário, ficando o infrator sujeito às penalidades previstas na Lei 6.437/77.
CHICO ARAÚJO
chicoaraujo@agenciaamazonia.com.br
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