segunda-feira, 23 de março de 2009

AS APARÊNCIAS QUE NÃO ENGANAM


Por Otávio Cabral- Da Veja

Parecia que a disputa de poder entre o PT e o PMDB caminhava para uma fissura de consequências imprevisíveis. Parecia que as rusgas entre os senadores Tião Viana e José Sarney faziam parte de um processo de expurgo de velhos vícios incrustados no Parlamento. Parecia até que as sucessivas e recentes denúncias de mordomias, nepotismo e fisiologismo no Senado ajudariam a catalisar uma onda de moralização de práticas e costumes. Em Brasília, porém, as aparências enganam – e enganam muito. Na semana passada, PT e PMDB se reuniram e combinaram um pacto de não agressão. Como a briga tinha raízes em disputa de espaços, nada tão simples para atender a quem reclamava quanto ceder um pouco mais de espaço, ou seja, uns cargos e umas verbas a mais. Assim foi feito, e selou-se o acordo de paz. O litígio entre Sarney e Tião também foi contornado da maneira mais pragmática possível no universo dos políticos. Tião denunciava Sarney por práticas fisiológicas. Sarney denunciou Tião por práticas fisiológicas. Como a troca de acusações chamusca a imagem de ambos, combinou-se um conveniente cessar-fogo. Dessa forma, a única coisa que vai continuar parecendo exatamente o que é é a imagem do próprio Senado – péssima e, mais grave, sem nenhuma perspectiva de mudança.

Tome-se como exemplo apenas o último escândalo. Descobriu-se que no Senado há 181 diretores – dois para cada senador – com salários que ultrapassam os 18.000 reais. É diretor de garagem, diretor para cuidar do check-in nos aeroportos, diretor de programa de ondas curtas. Diretorias bizarras que servem apenas para aumentar o salário dos servidores em cascata. A notícia provocou protestos no Parlamento a ponto de o presidente do Congresso, José Sarney, anunciar, sem pestanejar, que acabaria de imediato com metade dos cargos. Passados alguns dias, ele reduziu o corte para cinquenta e há quem aposte que pouca coisa vai mudar. Sarney, afinal, foi o responsável pela criação de 70% das tais diretorias. As demais saíram da caneta perigosa dos ex-presidentes Renan Calheiros e Jader Barbalho, ambos também especialistas em fazer caridade privada com dinheiro dos contribuintes. Nas últimas semanas foram várias as denúncias de uso de recursos públicos para fins pessoais (veja o quadro) sob as mais diversas formas de abuso. O presidente José Sarney, porém, prometeu que as distorções serão corrigidas.

A crise no Senado tem preocupado muito o governo, mas por outros motivos. Nada a ver com as fraudes, os desvios, o desperdício dos senhores senadores. Horas depois de retornar dos Estados Unidos, onde se encontrou com o presidente Barack Obama, Lula pediu a seu chefe-de-gabinete, Gilberto Carvalho, e ao ministro das Relações Institucionais, José Múcio, um informe detalhado sobre a situação. Na avaliação do presidente, a experiência mostra que uma briga entre dois partidos aliados tem mais poder destrutivo do que qualquer embate com a oposição. O risco, segundo o presidente, é a disputa extrapolar o limite do Congresso, contaminar os ministérios e inviabilizar a aliança em torno da candidatura de Dilma Rousseff. Cumprindo ordens do presidente, Múcio reuniu em um jantar os petistas Aloizio Mercadante e Ideli Salvatti, os peemedebistas Renan Calheiros e Romero Jucá, além do senador Gim Argello, do PTB. O PMDB se comprometeu a encerrar os ataques a Tião Viana e a ceder ao PT a liderança do governo no Senado. O PT garantiu que cessarão os ataques a Sarney e concordou com a entrada de um representante do PMDB na coordenação de governo. "Os dois lados se comprometeram a segurar seus exércitos. Os partidos, o Executivo e o Legislativo só têm a perder com essa disputa", afirma Múcio. O governo comemorou o desfecho e acredita que tudo voltará ao normal já a partir desta semana.

Em nome da tranquilidade – sempre ela –, o governo dá um jeito de empurrar para dentro do armário os problemas, desta vez no Senado. Na semana passada, a disputa ganhou ares de guerrilha. Aliados de Tião e de Sarney passaram a dar estocadas certeiras contra os rivais. Foi descoberto, por exemplo, que Sarney escalou sete policiais do Senado para vigiar sua casa em São Luís, e que sua filha, a senadora Roseana Sarney, utilizou passagens pagas pelo Senado para trazer amigos, familiares e aliados políticos do Maranhão para Brasília, além de hospedá-los na residência oficial da presidência da Casa. O contra-ataque veio no mesmo território com a revelação de que Tião Viana emprestou um celular do Senado para sua filha levar a uma viagem de quinze dias pelo México. "Se pretendem me intimidar com isso, quero deixar claro que, pela minha filha, respondo eu. Felizmente, ela não tem sobre a mesa 2 milhões de reais nem a Polícia Federal à sua volta", afirmou, em uma clara referência a Roseana, que teve esse montante apreen-dido na sede da empresa Lunus, que mantinha em sociedade com seu marido, quando era candidata à Presidência da República, em 2002. Tião tentou sem sucesso mostrar que cometera apenas um equívoco, e não um erro grave. Após o caso do celular ter explodido, um assessor de Sarney procurou Tião e o provocou: "De filha para filha".

Se, por um lado, esse surto de moralidade desgasta a imagem do Congresso, por outro também serve para resgatá-la. É em crises que se revelam os desvios da instituição e surgem as possibilidades de mudança. "Os políticos são pragmáticos e reagem quando são descobertos. E hoje em dia a sociedade cobra mais, pois está cada vez com mais escolaridade e mais acesso à informação. A leniência com a corrupção é menor", avalia o cientista político Alberto Carlos Almeida, do Instituto Análise. "De escândalo em escândalo, as instituições vão se reformando e melhorando. A velocidade é menor do que a necessária, mas é assim que as coisas mudam." Apesar do esforço federal em contrário, é improvável que a crise no Senado desapareça. Há uma disputa entre grupos de funcionários em torno da sucessão dos diretores que caíram por corrupção. E esses grupos de interesse são incontroláveis. Além disso, o clientelismo é da natureza de grande parte dos políticos. "Há uma tradição patrimonialista, o dinheiro público dos impostos dos contribuintes é apropriado privadamente pelos políticos", analisa o filósofo Denis Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Junte-se ao patrimonialismo a certeza da impunidade e chega-se ao quadro vivido hoje no Congresso."

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