Por Marina Silva
No Acre, nos idos dos meus 20 e poucos anos, participei de um grupo de teatro amador chamado Semente. Eu era figurinista e fazia algumas outras tarefas da nossa modesta produção. O nome da peça era "Toda noite tem pichação" e o atual governador do estado, Binho Marques, um dos atores. O primeiro ato começava com um foco de luz sobre a mão de Binho, que pichava um muro com a frase "Abaixo a Ditadura".
Hoje, pichar tem outras conotações mas ainda guarda algo do sentido de ocupar a cidade com gritos interditos, transmutados em letras, signos, símbolos.
Lembrei-me disso no início deste mês, em uma quarta-feira movimentada, como muitas na comissão de Constituição e Justiça do Senado, quando fui chamada para apresentar meu relatório sobre o projeto de lei do deputado Geraldo Magela (PT-DF) que proíbe a venda de tintas e embalagens do tipo aerossol aos menores de 18 anos.
Para alguns, aquele projeto poderia parecer iniciativa de importância menor, diante da urgência de tantos projetos que às vezes ficam na fila das comissões à espera de apreciação. Mas não era.
Meu lado professora talvez tenha sido decisivo para o significado que aquela tarefa assumiu para mim. O próximo passo foi convencer os demais senadores de que estávamos diante de um tema relevante, maior do que a simples proibição da venda de spray a menores, com a qual concordei em meu voto, por entender que a lei proposta pelo deputado pode dificultar a poluição visual urbana, embora não a impeça totalmente, uma vez que o produto pode ser comprado por um adulto e repassado ao menor.
O que torna o tema ainda mais relevante é sabermos do enorme número de jovens, a maioria menores de idade, que picham logradouros públicos, residências ou qualquer espaço onde possam deixar suas marcas, mesmo que à custa de riscos sérios à sua integridade física, além do dano causado.
Penso neles não como delinquentes, mas como quem, de algum modo, tenta "uma audiência" para poder expressar suas alegrias, medos, desejos e incertezas, por meio de uma espécie de escrita, que em nada ou quase nada se espelha nas nossas formas corriqueiras de comunicação.
Como bem disse Chesterton, um grande pensador cristão, em "Ortodoxia", um de seus livros mais conhecidos: "de alguma forma obscura, essas coisas eu pensava antes de saber escrever e sentia antes de pensar..." Talvez esses jovens só estejam expressando em ato aquilo que ainda não conseguiram transformar em palavras. No fundo, uma busca de interlocução.
Alertei, em meu relatório, para o fato de que o delito da pichação, por suas peculiaridades, não se enquadra no Código Penal, mas sim na Lei nº 9.605/98 - chamada Lei de Crimes Ambientais - que, em seu artigo 65, prevê que pichar, grafitar ou, por outro meio, conspurcar edificação ou monumento urbano, é passível de pena de detenção de três meses a um ano e multa.
Mesmo concordando que a pichação é, efetivamente, um desrespeito ao direito coletivo de se ter um ambiente visualmente limpo, também acredito que não devemos vê-la como objeto de mera repressão. É imprescindível que a tratemos a partir de uma visão socioeducativa, empenhada em entender a necessidade que tem esses jovens de dar vazão às suas necessidades de expressão.
Concordo com a educadora e psicanalista Maria Augusta Spiller quando diz que "pichar pode ser interpretado não como vontade de destruir, mas como reconhecimento de identificação, numa sociedade que só produz anonimatos".
Por isso mesmo é preciso que se criem espaços de realização e autoria, afim de que muito desses jovens possam transitar da mera pichação para outras formas de criação, que lhes permitam dar sentido e significação àquilo que registram nas paredes, fachadas e muros.
Quem sabe essa primeira inscrição precise apenas ser reescrita, instando-nos a aprender a lê-la e decifrá-la antes de querer destruí-la. A não vê-la preliminarmente como delinquência ou mera repetição carente de sentido, mas talvez como pedido de socorro ou apelo ao encontro.
Devemos fugir de posturas simplistas, do tipo estigmatizar ou "passar a mão na cabeça" e justificar tudo o que os jovens fazem. Entre um e outro extremo há um grande espaço educativo e de diálogo. Se não fosse assim, não teríamos hoje, numa linha limítrofe com a pichação, a vitalidade artística da grafitagem, com importância social e estética crescente nas periferias das cidades. Quantos, que antes eram considerados apenas "vândalos", hoje são grafiteiros reconhecidos e respeitados?
Embora grafitti e pichação não sejam a mesma coisa, a sensibilidade e o talento que desabrocham em uma podem estar contidos na agressividade e na falta de limites da outra. Para criar a oportunidade de trânsito entre esses territórios da juventude é preciso antes haver a disposição da sociedade em abrir o caminho. O que jamais ocorrerá se, a despeito das inúmeras condições adversas de vida que ajudam a compor o complexo quadro comportamental da maioria dos jovens envolvidos em pichações, eles forem julgados e taxados como vilões. Talvez venham a ser mesmo, levados pela inflexibilidade e pela atitude acomodada de lavar as mãos e punir. Que, aliás, nunca deu bons resultados.
*Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre, ex-ministra do Meio Ambiente e colunista da Terra Magazine.
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