Elson Martins*
Ocupando dois ônibus e uma camionete, 44 animadas pessoas saíram de Rio Branco às 13h10 de sexta-feira, 18, para fazer uma imersão na floresta do Seringal Cachoeira em Xapuri, a 188 quilômetros de Rio Branco. Chegaram ao destino às 16h10 e lá permaneceram até a tarde de domingo. No retorno, se confessaram irremediavelmente modificadas pela experiência.
A maioria chorou de emoção. São jovens estagiários que estudam história, sociologia, arquitetura e biologia, entre outros cursos, e estão passando por um treinamento na Biblioteca da Floresta que trabalha com a perspectiva de promover a cultura tradicional da floresta através do dialogo entre saberes.
A imersão é proposta da Sociedade Phylosophia - um dos quatro grupos temáticos com abrigo na instituição - que tem como coordenador o professor e filósofo Marcos Afonso, para quem “como povos da floresta temos a obrigação de conhecê-la bem e de aprender a respeitá-la”.
O Cachoeira está sendo considerado “seringal do século XXI” com justiça. Não só porque é um símbolo da resistência contra o desmatamento e a terra onde Chico Mendes viveu e pela qual foi morto, mas também porque, transformado em assentamento agro-extrativista, se envolve com suas 70 famílias em manejo comunitário e outras idéias que levam ao desenvolvimento sustentável. O governo reconhece o esforço da comunidade e faz investimentos lá.
Graças a esse reconhecimento e a ajuda financeira do BNDES (banco oficial de desenvolvimento social) foi construída a Pousada Cachoeira na área, charmosa e agradável ao custo de 800 mil reais. Gerida pela própria comunidade, o empreendimento mantém a leveza e a magia do lugar. O preço dos chalés e dos alojamentos coletivos não assusta, nem o da saborosa comida caseira a 25 reais por pessoa.
Os Mendes - A matriarca da comunidade é dona Cecília Alves Mendes, 83 anos, tia de Chico Mendes e mãe de 19 filhos, todos nascidos com parteira e criados no peito, como ela mesma explica. Ô mulherzinha valente para o trabalho e a sobrevivência na floresta! Na época dos “empates” contra o fazendeiro assassino Darly Alves, que queria desmatar o seringal e acabou matando seu filho mais generoso e sagaz, ela passou três meses cozinhando para 150 homens, mulheres e crianças acampadas na área.
Na chegada do pessoal da imersão dona Cecília foi até a pousada à noite para falar de sua vida e de sua luta. Foi recebida com aplausos, todo mundo de pé em reverência, e no final da conversa deixou sua marca em olhos avermelhados e solidários. Seu nome apareceu nas impressões finais como a melhor coisa para quem viu a floresta pela primeira vez.
O seringueiro Nilson Mendes, um de seus rebentos, tem dificuldades para ouvir (usa aparelho), mas não para falar. É o principal guia, que leva o pessoal às trilhas por dentro da mata falando das qualidades a serem pesquisadas: nas folhas, cascas e raízes, nos animais e insetos, nos mitos e histórias de assombração. É inteligente, cuidadoso, ao mesmo tempo tradicional e moderno com pitadas de encantamento.
Tem o Sebastião, sereno e seguro de sua vivência na floresta, o Duda, o sobrinho Beto... É mesmo uma família feita de boa massa. E quiçá isso ajude a vencer o olhar torto de quem não consegue entender a linguagem de vanguarda e simplicidade que possui.
Os visitantes - No começo eles chegam barulhentos e desrespeitosos, tal como aprendem ser na cidade. Depois se deixam dominar pela floresta e se entregam a reflexão chegando a chorar de emoção: “Gostei da Samaúma (árvore imensa)”, disse Amanda; “Dona Cecília fala com alegria de situações dramáticas que viveu. Meu pai foi seringueiro e também ria quando falava. Encontrei um lado meu que mantinha guardado” – Cíntia; “Eu volto da imersão muito diferente. Acho que agora vou fazer um discurso menos administrativo. Não imaginava que ainda pudesse ter esse tipo de emoção” - Fátima, técnica da Biblioteca; “Pessoas da floresta falam com orgulho de sua origem e de seu trabalho. Temos que aprender com elas” - Joel.
Esse foi o tom das falas de despedida no domingo. Mas alguns depoimentos chamaram atenção por outros aspectos. Renato, por exemplo, disse que “Chico Mendes pra mim é mais um mito. Meu pai fala mal do Chico Mendes e elogia o Darly”. Acrescentou em seguida uma informação que pode explicar sua aparente indiferença acerca do líder seringueiro: “Quando ele morreu (22 de dezembro de 1988) eu estava nascendo”. Por fim, reconheceu: “A imersão foi coisa para guardar pro resto da vida”.
Reinaldo, Fieska, Marquito, Rodrigo, Fernanda, Aline, Myully, Suelen, Rafael e Rafael (Estrela), Natália, Manu, Adriano, Israel, Marieta e outros estagiários e técnicos revelaram sentimentos carinhosos com relação à floresta. Eles deixaram perceber uma forte identidade, algo de raiz nessa história de acreanidade, e uma saudade pouco usada que acena com potencialidades políticas insuspeitas.
Silêncio desconcertante - À noite na pousada, qualquer estranho ao meio se desconcerta. E certamente indaga a si mesmo: como pode uma imensidão (floresta em volta) daquelas, habitada por pessoas, árvores e bichos diversos - se manter em determinadas horas em silêncio profundo? Dá para ouvir apenas alguns sapos e chiados que mais parecem cochichos. Seria porque é tão complexa e ao mesmo tempo perfeita na sua criação?
Nilson Mendes até que procura explicar: na época do verão (estiagem de maio a outubro) caem folhas e galhos, entra mais luz na floresta e os animais procuram se esconder de seus predadores. Pequenas caças fogem do gavião real. As cobras se metem entre a folhagem buscando sapos. Outros bichos vão pra longe, bem longe.
Fico imaginando se dessa aparente harmonia não se poderia tirar lições para as sociedades barulhentas e desorganizadas das zonas urbanas. Uma espécie de armistício, por exemplo, que levasse os humanos a valorizar o sentimento como alternativa a alguns conceitos comprovadamente desastrosos. E fico também imaginando se a tempestade que sucede à calmaria, assustadoramente, não teria outras lições a dar.
Fecho - No meio dessas elucubrações eu construí minhas impressões sobre a imersão da Biblioteca da Floresta. Antes, porém, pincei frase do Toinho Alves num texto sobre Florestania em que ele afirma: “A floresta não nos pertence, nós é que pertencemos à floresta”.
Simples, né? Pois a partir daí, consciente ou inconscientemente essa inversão no olhar pode mudar tudo para melhor na cabeça da gente.
Claro, se a floresta não nos pertence, não podemos doá-la ou vender, menos ainda destruí-la ou machucá-la. Há milênios os indígenas vivem a ensinar que, ao invés disso, precisamos venerá-la e respeitá-la. Já seria um bom começo conhecê-la de verdade, ou começar a conhecê-la, com fez o pessoal da imersão.
*Elson Martins é jornalista acreano. Como repórter regional de O Estado de São Paulo, acompanhou a partir 1975 a primeira fase dos conflitos pela terra no Acre, ajudando a colocar Chico Mendes na mídia local e nacional. Foi um dos editores do jornal alternativo Varadouro, que tomou partido da luta dos seringueiros, índios e posseiros a partir de 1978. E-mail para contato: elson-martins@uol.com.br. Texto publicado originalmente no site Kaxiana.
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