Clóvis Rossi*
A reeleição de Evo Moraes na Bolívia abre um período em que o país vai fazer um experimento inédito na história universal, qual seja o de regressar no tempo 500 anos, mais ou menos, para reviver a época pré-colonial.
Caberá ao novo governo Morales implementar a Constituição aprovada em referendo no início deste ano.
Cria um Estado Plurinacional, formado pelas 36 nações que convivem na Bolívia, dá a elas um grau de autonomia ainda a ser melhor definido e equipara a Justiça indígena à do mundo branco.
Há um outro aspecto, mais econômico que antropológico, que torna a nova Constituição um experimento a observar com lupa: dá ao Estado o controle sobre recursos minerais e gasíferos. Até aí, no entanto, nada de muito novo. Já foram feitas inúmeras experiências do gênero e mesmo países que mergulharam com gosto no culto ao mercado, como México e Chile, jamais nacionalizaram o petróleo e o cobre, respectivamente.
A grande novidade é mesmo o fenômeno assim descrito pelo ex-presidente boliviano Carlos Mesa: "A América Latina é filha de duas vertentes de pensamento, a indígena, pré-hispânica, e a ocidental, os três séculos de conquista e império [que se seguiram à conquista espanhola]".
Para Mesa, "incluir o mundo indígena não significa excluir ou negar o outro elemento". Para ele, opositor a Evo Morales, mas longe de ser um troglodita como parte da oposição ao presidente, a nova Constituição e a prática do governo Evo cometem esse erro.
"Será a tumba de Evo", diz outro ex-presidente, Jaime Paz Zamora, líder do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária, que já não tem nada de esquerda nem de revolucionário), também opositor do presidente.
Mas um opositor capaz de admitir que Evo Morales não surge de combustão espontânea mas "vem de Sánchez de Lozada". Refere-se a Gonzalo Sánchez de Lozada, o mais neoliberal de todos os presidentes bolivianos, que conseguiu eleger-se presidente por duas vezes mesmo falando espanhol com forte sotaque "gringo", porque foi educado nos Estados Unidos (onde está, aliás, refugiado depois de ter renunciado sob pressão das ruas).
Posto de outra forma, foi a exclusão social que fez nascer a nova Constituição. E exclusão social significa necessariamente a marginalização do indígena, maioria da população boliviana.
O problema não é, portanto, o resgate dos marginalizados supostamente presente na nova Carta, mas a imensa dificuldade que representa voltar tantos anos para trás no ordenamento territorial e jurídico.
Uma das nações desse Estado Plurinacional, a pacahuara, é formada por apenas 25 pessoas. Os toromonas "foram vistos pela última vez lá por 1500", ironiza Mesa.
Se já não é fácil organizar uma nação unitária com diferentes etnias ou culturas, imagine a complicação que será lidar com 36 nações de presenças tão diversas como os quechuas e aimaras (2,5 milhões ou 96% do total de indígenas) e os 25 pacahuaras.
A aplicação da Justiça é outro tremendo complicador. Não há tradição escrita da justiça pré-hispânica nem um tribunal de apelação, característica essencial para a defesa de qualquer cidadão.
Basta citar um exemplo, justamente na área que fez a fama de Evo Morales, a do plantio de folhas de coca. Ele continua sendo presidente do sindicato dos "cocaleros", acumulando o cargo com a Presidência da República, o que já é uma tremenda anomalia.
A folha de coca é um elemento cultural e religioso importante na cultura indígena. Mascá-la engana a fome e o frio. Tomar chá de coca ajuda na digestão nas alturas andinas. Até aí, tudo bem. Mas quando os autóctones mandavam na Bolívia ou no que viria a ser a Bolívia, não haviam chegado os produtos químicos que permitem a transformação da folha em pasta de coca primeiro e em pó, a cocaína, depois.
Como julgar eventuais delitos nesse âmbito usando a ótica pré-hispânica?
Retroagir a um período tão remoto é, pois, um salto no escuro. Pode-se criticar a ocupação espanhola, pode-se até ver nela algum aspecto positivo. O que não se pode é fazer de conta que não houve e começar tudo de novo.
Detalhe nada secundário: esse experimento dar-se-á em um país que tem 3.500 quilômetros de fronteira com o Brasil.
*Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".
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