Luciano Pires*
Como todo brasileiro vivo, acompanhei o caso da Isabella Nardoni, a menina que foi jogada pela janela do prédio. E, como a maioria dos brasileiros vivos, não agüento mais a cobertura jornalística.
Num daqueles jornais matinais da Record, uma repórter intercepta um vizinho do apartamento onde o pai e a madrasta da menina estão hospedados. E fica insistentemente perguntando se ele viu ou ouviu algo. O homem diz que não, que de seu apartamento não dá para ouvir nem ver, que só vê uma parte da sacada. E ela insiste: da sacada dá pra ver a sala? A porta da sala fica aberta? São minutos intermináveis de vazio, em busca de algum fato novo. Do “furo”.
E os videoclipes do terror? Com as imagens da menina na festa da escola? E abraçada com a mãe na piscina? Imagens editadas e ao som de musiquinhas melosas. Aliás, quem deu esses filmes e essas fotos para as emissoras de televisão? Com que intuito?
Nas entrevistas a câmera fecha insistentemente nos olhos das pessoas, desesperadamente em busca de uma lágrima. Quando a lágrima aparece, entra o pianinho ao fundo...
Dramaturgia. Espetáculo. Showrnalismo, conforme o termo cunhado pelo jornalista José Arbex, em seu livro homônimo.
A notícia vira espetáculo. E os repórteres são lançados à rua com a missão de conseguir mais que os concorrentes.
O próximo passo qual é? Vai aparecer um “jornalista investigativo” que “desvendará” o caso e escreverá um livro. Quer apostar? Já vi esse filme.
Em novembro de 1970 eu tinha 14 anos e morava em Bauru. Uma menina de 10 anos chamada Mara Lúcia Vieira desapareceu levada por um estranho quando brincava em frente de casa. O corpo da menina, violentada, é encontrado seis dias depois numa casa vazia próxima de onde ela morava. Meu pai era correspondente dos Diários Associados em Bauru e cobriu todos os detalhes do crime. Naquele dia 16 de novembro de 1970 ele chegou em casa e caiu no choro, pois tinha visto o corpo da Mara Lúcia. Comoção na cidade. Manchetes em todos os jornais de Bauru e da Capital. E uma busca frenética pelo culpado. Vários suspeitos são presos e depois liberados. E um dia chega a Bauru o jornalista Saulo Gomes, famoso por suas reportagens policiais. Faz suspense e acusa um tal de “Francês” como sendo o culpado. Nada fica provado... E até hoje aquele crime é um mistério.
Lembro-me perfeitamente da comoção na cidade e do papel que a mídia desempenhou no caso, a cada dia reportando as buscas e as conclusões da polícia. Mas os jornais e rádios jamais foram personagens influentes na ação. Até surgir Saulo Gomes.
O que acontece hoje é mais agressivo. A mídia deixa de ser a contadora de histórias para ser agente ativa no processo. Ela cria expectativas, aumenta percepções, acusa as pessoas e expõe hipóteses como sendo certezas. A verdade da manhã transforma-se em mentira à tarde e volta a ser verdade à noite. A mídia indicia e julga. Só não executa...
E então o jornalista da televisão questiona a razão de as pessoas ficarem em frente à casa onde estão os suspeitos, xingando-os, jogando pedras no carro do avô da menina, num show de histeria coletiva.
O jornalista não sabe a razão? Pois eu sei. É por causa dele mesmo, de seus colegas, do programa de televisão, dos jornais, rádios e revistas que transformaram o crime e seus personagens – inclusive o prédio – em celebridades.
Motivada, dona Maria pega um ônibus às seis da manhã e vai até o prédio famoso onde arranja um lugarzinho bom para poder xingar os “assassinos”. Bate fotos com seu celular. Levanta o cartaz onde escreveu sobre o anjinho. Come o sanduíche que levou de casa. Comenta com a comadre sobre a janela de onde foi lançada a menina. Fala da informação exclusiva que recebeu do primo da namorada do vizinho do tio da amiga que trabalha no necrotério. Participa da ação. E, se der sorte, é entrevistada pela rede de televisão. Não acrescenta nada, mas tem seus quinze segundos de fama. E incentiva outras centenas de donas-marias, ávidas por aparecer na televisão. E loucas pra ver mais televisão. Que é tudo que a televisão quer.
A mídia precisa de Isabella.
*Luciano Pires é jornalista, escritor, conferencista e cartunista. Faça parte do Movimento pela Despocotização do Brasil, acesse www.lucianopires.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Política de moderação de comentários
A legislação brasileira prevê a possibilidade de se responsabilizar o blogueiro pelo conteúdo do blog, inclusive quanto a comentários; portanto, o autor deste blog reserva a si o direito de não publicar comentários que firam a lei, a ética ou quaisquer outros princípios da boa convivência. Não serão aceitos comentários anônimos ou que envolvam crimes de calúnia, ofensa, falsidade ideológica, multiplicidade de nomes para um mesmo IP ou invasão de privacidade pessoal / familiar a qualquer pessoa. Comentários sobre assuntos que não são tratados aqui também poderão ser suprimidos. Este é um espaço público e coletivo e merece ser mantido limpo para o bem-estar de todos nós.