sábado, 3 de maio de 2008

SHOWRNALISMO

Luciano Pires*

Como todo brasileiro vivo, acompanhei o caso da Isabella Nardoni, a menina que foi jogada pela janela do prédio. E, como a maioria dos brasileiros vivos, não agüento mais a cobertura jornalística.

Num daqueles jornais matinais da Record, uma repórter intercepta um vizinho do apartamento onde o pai e a madrasta da menina estão hospedados. E fica insistentemente perguntando se ele viu ou ouviu algo. O homem diz que não, que de seu apartamento não dá para ouvir nem ver, que só vê uma parte da sacada. E ela insiste: da sacada dá pra ver a sala? A porta da sala fica aberta? São minutos intermináveis de vazio, em busca de algum fato novo. Do “furo”.
E os videoclipes do terror? Com as imagens da menina na festa da escola? E abraçada com a mãe na piscina? Imagens editadas e ao som de musiquinhas melosas. Aliás, quem deu esses filmes e essas fotos para as emissoras de televisão? Com que intuito?
Nas entrevistas a câmera fecha insistentemente nos olhos das pessoas, desesperadamente em busca de uma lágrima. Quando a lágrima aparece, entra o pianinho ao fundo...
Dramaturgia. Espetáculo. Showrnalismo, conforme o termo cunhado pelo jornalista José Arbex, em seu livro homônimo.
A notícia vira espetáculo. E os repórteres são lançados à rua com a missão de conseguir mais que os concorrentes.
O próximo passo qual é? Vai aparecer um “jornalista investigativo” que “desvendará” o caso e escreverá um livro. Quer apostar? Já vi esse filme.

Em novembro de 1970 eu tinha 14 anos e morava em Bauru. Uma menina de 10 anos chamada Mara Lúcia Vieira desapareceu levada por um estranho quando brincava em frente de casa. O corpo da menina, violentada, é encontrado seis dias depois numa casa vazia próxima de onde ela morava. Meu pai era correspondente dos Diários Associados em Bauru e cobriu todos os detalhes do crime. Naquele dia 16 de novembro de 1970 ele chegou em casa e caiu no choro, pois tinha visto o corpo da Mara Lúcia. Comoção na cidade. Manchetes em todos os jornais de Bauru e da Capital. E uma busca frenética pelo culpado. Vários suspeitos são presos e depois liberados. E um dia chega a Bauru o jornalista Saulo Gomes, famoso por suas reportagens policiais. Faz suspense e acusa um tal de “Francês” como sendo o culpado. Nada fica provado... E até hoje aquele crime é um mistério.

Lembro-me perfeitamente da comoção na cidade e do papel que a mídia desempenhou no caso, a cada dia reportando as buscas e as conclusões da polícia. Mas os jornais e rádios jamais foram personagens influentes na ação. Até surgir Saulo Gomes.

O que acontece hoje é mais agressivo. A mídia deixa de ser a contadora de histórias para ser agente ativa no processo. Ela cria expectativas, aumenta percepções, acusa as pessoas e expõe hipóteses como sendo certezas. A verdade da manhã transforma-se em mentira à tarde e volta a ser verdade à noite. A mídia indicia e julga. Só não executa...

E então o jornalista da televisão questiona a razão de as pessoas ficarem em frente à casa onde estão os suspeitos, xingando-os, jogando pedras no carro do avô da menina, num show de histeria coletiva.

O jornalista não sabe a razão? Pois eu sei. É por causa dele mesmo, de seus colegas, do programa de televisão, dos jornais, rádios e revistas que transformaram o crime e seus personagens – inclusive o prédio – em celebridades.
Motivada, dona Maria pega um ônibus às seis da manhã e vai até o prédio famoso onde arranja um lugarzinho bom para poder xingar os “assassinos”. Bate fotos com seu celular. Levanta o cartaz onde escreveu sobre o anjinho. Come o sanduíche que levou de casa. Comenta com a comadre sobre a janela de onde foi lançada a menina. Fala da informação exclusiva que recebeu do primo da namorada do vizinho do tio da amiga que trabalha no necrotério. Participa da ação. E, se der sorte, é entrevistada pela rede de televisão. Não acrescenta nada, mas tem seus quinze segundos de fama. E incentiva outras centenas de donas-marias, ávidas por aparecer na televisão. E loucas pra ver mais televisão. Que é tudo que a televisão quer.

A mídia precisa de Isabella.

*Luciano Pires é jornalista, escritor, conferencista e cartunista. Faça parte do Movimento pela Despocotização do Brasil, acesse www.lucianopires.com.br.

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