Capturados na Amazônia, anofelinos são biopirateados por pesquisadores brasileiros e estrangeiros.
BRASÍLIA — Centenas de espécimes do mosquito transmissor da malária, coletadas com o uso de cobaias humanas em várias partes da Amazônia, estão sendo enviados para os Estados Unidos onde são estudados em laboratórios. O responsável pelos freqüentes envios dos mosquitos seria Allan Kardec Ribeiro Gallardo, biólogo e pesquisador brasileiro da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). A denúncia é da Associação Brasileira de Proteção aos Sujeitos da Pesquisa Clínica (Abraspec) que, há meses, investiga as conexões de uma suposta máfia de malária em atuação na Amazônia. A quadrilha contaria com o aval de autoridades brasileiras da área de saúde.
Há também indícios de que o National Institute of Health, dos Estados Unidos, investiu ilicitamente nos últimos anos mais de US$ 20 milhões na Amazônia na busca do mosquito transmissor da malária. As ações, segundo a Abraspec, contariam com a ajuda direta de vários pesquisadores e autoridades brasileiras. “Há provas de que foram pago mais de US$ 925 mil dólares só por aquele estudo realizado no Amapá (Heterogeneidade de Vetores e Malária no Brasil) fora todos os outros que ainda estão em andamento em solo brasileiro”, assegura o presidente da Abraspec, o advogado Jardson Bezerra. O advogado é especialista em Biodireito.
A Abraspec constatou os indícios da existência dessa máfia em farta documentação coletada na Procuradoria da República no Amapá, no gabinete do senador Cristóvam Buarque (PDT-DF) e no processo investigatório do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que apurou denúncias envolvendo a pesquisa “Heterogeneidade de vetores e malária no Brasil”, ocorrida no Amapá até 2005.
Foi o biólogo Allan Kardec quem, em 2004, coordenou as pesquisas científicas com seres humanos (cobaias) no Amapá. Mais recentemente, ele esteve no Acre, onde, a exemplo do Amapá, agentes de endemias servem de ‘iscas humanas’ na captura do mosquito da malária. Gravações e fotos comprovam a prática, negada pelo governo do Acre.
Kardec é também membro da equipe do Programa Nacional de Controle da Malária. O programa é chefiado por José Lázaro de Brito Ladislau, e tem ainda Fabiano Geraldo Pimenta Júnior (diretor-técnico de Gestão), e Gerson Penna (secretário de Vigilância em Saúde), como integrantes.
O relatório final da investigação do Conselho Nacional de Saúde, de 2006, é taxativo: “Fica evidente que material biológico colhido no Brasil foi enviado para instituições estrangeiras com o aval de instituições públicas brasileiras, inclusive governamentais (...). O documento pede a apuração sobre a regularidade legal do envio, mas até hoje não se sabe da punição dos envolvidos. A coleta, por estrangeiros, de dados e materiais científicos no Brasil deve ser fiscalizada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, de acordo com as disposições constantes da Portaria MCT nº 55 de 14/03/1990.
Biopirataria comprovada
Segundo a Abraspec, o primeiro documento probatório da prática de biopirataria trás o timbre do governo do Amapá. É um documento do Centro de Referências de Doenças Tropicais, assinado por Álvaro Almeida Couto, e dirigido ao delegado federal de Agricultura do Amapá. O ofício solicita o Certificado Zoosanitário Internacional para assegurar “o transporte de 120 unidades de fêmeas de Anopheles sp para o Dr. Jan Conn, Wadsworth Center, New York, Departement of Health.”
O segundo documento está em inglês, tem timbre do Instituto Evandro Chagas de Belém e se dirige sob forma de declaração To whon it may concern (A quem interessar possa). Nela, a médica Marinete Póvoa declara: Robert Zimmerman trabalha em um projeto, no qual envolve seu grupo de entomologia e a secretaria de vigilância em saúde de Belém, no Pará. Póvoa também afirma que tal projeto é sustentado pelo National Institute of Health (EUA).
O estudo ao qual Marinete Póvoa se refere atende pelo pomposo nome de Malaria Vector Biology in Brasil: Genetics and Ecology. Ela destaca que, como parte do plano, mosquitos anofelinos são capturados em locais de estudo próximos a Macapá e enviados aos Estados Unidos para pesquisa adicionais.
A Abraspec também juntou provas que comprovam o envio de anofelinos capturados no Acre para outras regiões da Amazônia. Seis agentes atestam em declaração assinada que, além de fazerem a captura dos anofelinos, os quais alimentavam com o próprio sangue e os conduziam ao laboratório, também foram obrigados a embalar 80 mosquitos vivos. Depois de acondicionados em caixas térmicas, os mosquitos foram enviados ao Amapá, Amazonas, Pará e Rondônia.
Outra prova do envio dos anofelinos é um e-mail enviado no dia 21 de março de 2007 por Anderson Sarah da Costa, membro da equipe de Entomologia de Cruzeiro do Sul (AC). A mensagem eletrônica é destinada a doutora Roseli La Corte dos Santos, integrante do Programa Nacional de Controle da Malária, do Ministério da Saúde.
No e-mail, Costa confessa estar ansioso para saber se os mosquitos enviados ao Amapá chegaram em condições para a realização da prova de resistência e qual teria sido o resultado. A resposta de Roseli não é nada animadora. Diz que os mosquitos não chagaram em condições de serem aproveitados nos estudos, mas destaca o esforço empreendido por Costa e a equipe do Acre. Ainda de acordo com Roseli, o maior número de mosquitos vivos foi o de Manaus (17), de Rondônia (4) e Pará(1).
Prática mortal
Para a Abraspec, a prática é perversa; mortal. E leva, ao longo dos anos, muitas pessoas a se dedicarem dias e noites — dando o próprio sangue — na busca da cura de um flagelo do Brasil e do mundo: a malária. O uso das cobaias humanas, normal para muitos, é uma atividade desumana e, nos últimos anos, levou centenas de pessoas à morte, inclusive na Amazônia brasileira. Atualmente, revela a Abraspec, cobaias humanas são usadas em pesquisas científicas no Acre, assim como no Amapá, Pará, Roraima, Amazonas, Tocantins, Mato Grosso, Maranhão e Rondônia em busca do seqüenciamento do genoma do mosquito Anopheles das espécies Plasmodium falciparum e P. vivax.
A prevenção e o controle da doença no Brasil cabem à Funasa. Contudo, pessoas do órgão têm ligações diretas com pesquisadores internacionais, o que, segundo a Abraspec, facilita a utilização de pessoas nas experiências científicas. Antes de a Funasa lançar o Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária (PNCM) já havia ligação direta ou indireta entre pesquisadores e servidores públicos brasileiros com autoridades e pesquisadores americanos, lembra a Abraspec.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima até 2010 um contingente de 3,5 bilhões de pessoas habitarão áreas em que a malária é transmitida. A doença mata anualmente cerca de 1 milhão de indivíduos, e entre 300 e 500 milhões são infectados, segundo a OMS.
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