terça-feira, 27 de maio de 2008

Ossos do ofício

Bruno Medina

O protagonista destas próximas linhas é, por assim dizer, um estranho no que diz respeito a literatura ou a qualquer outro tipo de expressão artística, apesar de ser um velho conhecido de cada um de nós. Há quem o considere -a começar por ele próprio- um injustiçado, condenado a desempenhar eternamente seu papel de secundária importância dentro do coletivo em que se insere.

É possível que alguns de vocês se constranjam pela simples menção ao seu nome, ou mesmo por considerarem que a principal atividade de nosso personagem deveria permanecer à margem de qualquer atenção. Devo confessar no entanto que, nestes últimos dias, sua emblemática imagem tem sido presença constante em minha rotina. Chega de rodeios, este post é sobre o intestino.

Sim, intestino. O meu, o seu, o de todos nós. Estando já há dez dias fora do país, posso afirmar sem sombra de dúvida que, de todas as adaptações inerentes à viagem, a mais penosa se refere a ele. Língua estrangeira? Fuso horário? Saudades de casa? Nada disso é páreo frente ao desafio que é domar o intestino num país estrangeiro.

Na tentativa de minimizar os inconvenientes causados pelo confrontamento, minha experiência diz que o melhor mesmo é ser paciente e deixar que ele sinta que está no comando das ações. Há de se compreender que o intestino é um orgão conservador, avesso a novidades e resistente às menores alterações no seu “modus operandi”.

Desacostumado a ser a vedete do corpo humano -posto que se reveza entre coração e pulmões- o intestino nunca teve seu nome sequer citado numa canção de amor, aliás, muito pelo contrário, afinal, por motivos óbvios, só costuma ser relacionado com algo nada poético.

Diria ele que “são ossos do ofício”. Por isso não é nenhum absurdo comparar seu mau funcionamento à atitude de alguém que abnega a própria fama, ou que prefere reforçar a má reputação ao invés de tentar modificá-la. A frase que melhor o define é “falem mal, mas falem de mim”.

Então você está longe de casa, almoçando na hora do café da manhã, jantando na hora do almoço e, principalmente, comendo tudo que vê pela frente, e muito, propiciando ao organismo um bem-vindo carnaval dos sentidos. Você confia que seu intestino absorverá a carga extra de trabalho, e é justo quando mais se precisa que ele costuma causar problemas. Pressionado por estar no centro das atenções, nosso sensível amigo receia não atender às expectativas e entra em colapso.

Em alguns casos fecha para balanço, como faria um metódico funcionário de repartição que tem, sobre sua mesa, uma enorme pilha de documentos importantes para avaliar. Seu profissionalismo exacerbado o aconselha a só retomar as atividades quando sentir que pode atender a nova demanda, mesmo que isso demore dias.

Num outro cenário, impedido de trabalhar em condições ideais, prefere apenas abdicar de suas funções e abrir as comportas, deixando implícita a relevância de seu departamento para todo o resto da empresa.

Aí é um Deus nos acuda; ele te acorda no meio da noite, te chama duas, três vezes ao dia, sempre nas piores situações, dá falso alarme, ou então manda aqueles recados que causam imenso constrangimento, impondo um clima de insustentável apreensão que o habilita a determinar as condições e a duração do passeio, bem como ter a palavra final na escolha das refeições. Existem algumas formas de enganá-lo, mas isto é extremamente desaconselhável para iniciantes, sob o risco do agravamento da situação e a permanência indeterminada no banheiro.

Expostas as reivindicações, a tensão costuma ser amenizada quando se tem em mente que tudo que o intestino deseja é um pouco de atenção e carinho.

Caso ele não esteja disposto a negociar, o jeito é apelar para iogurtes, alimentos ricos em fibras e, em casos mais extremos, laxantes, reguladores intestinais ou aqueles temíveis remedinhos da vovó. Se tudo falhar, faça uma música para ele.

*Bruno Medina é músico da banda Los Hermanos e escritor nas horas vagas. Nascido no Rio de Janeiro, formou-se em comunicação pela PUC-RJ, mas a música nunca permitiu que chegasse ao mercado publicitário. Começou a tocar piano e escrever histórias ainda criança, sendo que as duas aptidões o acompanham desde então.

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