Por Luisa Lessa Galvão*
No Acre, há 106 anos, tem-se o uso consagrado de ACREANO. Este gentílico faz parte da memória cultural, integra-se à história, à memória do lugar. E um povo sem história é povo sem memória. A expressividade acreana está presente nos textos históricos e oficiais, nos registros em cartório, na sagração de usos de toda gente. Até mesmo os dicionários respeitáveis do idioma pátrio, como Nascentes, Aulete, Aurélio e Houaiss, trazem as duas formas, ou seja, duas variações: acreano e acriano. E no decorrer de mais um século as pessoas escreveram somente ACREANO. E, agora, por conta de um Acordo Ortográfico as pessoas devem abandonar sua história, tradições, costumes, usos?
Este gentílico não é um invento de ocasião, um fato de palavra, mas um fato de linguagem que faz parte da cultura, da tradição regional, da alma do povo. E, diferentemente do entendimento de cultura, pelo senso comum, como erudição ou etiqueta, a cultura apresenta uma série de paradoxos, cujos estudos e interpretações conduzem à compreensão mais realista do fenômeno, pois, embora universal na experiência, a linguagem se apresenta, em suas manifestações regionais, com características únicas, distintas. A cultura configura e determina o curso da vida das sociedades.
Entende-se por cultura o conjunto de manifestações artísticas, sociais, históricas, lingüísticas e comportamentais de um povo ou civilização. Portanto, fazem parte da cultura as seguintes atividades e manifestações: música, teatro, rituais religiosos, língua falada e escrita, mitos, hábitos alimentares, danças, arquitetura, invenções, pensamentos, formas de organização social, etc.
Assim, no caso do gentílico acreano -- impregnado da cultura e da tradição regional – nasceu do topônimo Acre. E, como diz Dick (1990), ele integra um processo pleno de motivação a partir do qual é possível deduzir conexões entre o nome e a área geográfico-social por ele designada, entre o nome e a tradição, entre o nome e a história, entre o nome e os costumes.
Então, essa imposição que faz o Acordo Ortográfico, contraria todo o ensinamento de que “os homens fazem as línguas e não a língua os homens”, como disse Fernão de Oliveira, em 1536. Justo será manter as duas variantes, como sempre existiu: a histórica e a lingüística. A histórica realça o valor da tradição, da história, dos costumes de um povo. A lingüística, para contentar os normalistas do idioma. Isso não é pedir muito, porquanto o Acordo está repleto de concessões ou exceções, palavras com acento agudo ou circunflexo, palavras com consoantes mudas, enfim, muitas quebras de unidade entre o cânone europeu e o brasileiro.
A Base I, item 3º, diz que ‘os vocábulos autorizados registrarão grafias alternativas admissíveis’. Na Base II, pela etimologia se mantém o h em herbáceo, mas pela consagração do uso ele permanece suprimido em erva. A Base III aborda a diferença no emprego de homofonia, afirmando que o uso de uma ou outra forma se regula pela história das palavras. Na Base IV, está escrito que se conservam ou se eliminam, facultativamente, alguns fonemas de palavras como aspecto ou aspeto, caracteres ou carateres, dicção ou dição, corrupto ou corruto, recepção, receção etc. Ainda, na Base IV, item 3º, conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, o b, bt, g, gd de palavras como: subtil e seus derivados; amígdala ou amídala etc.
Na Base VII, admitem-se, excepcionalmente, o uso dos ditongos orais que tanto podem ser tônicos quanto átomos, representados nos antropónimos/antropônimos como Caetana, Caetano, caetaninha. Na Base VIII, avista-se, também, a possibilidade de dupla grafia em académico [português europeu] ou acadêmico [português do Brasil], bidé ou bidê, croché ou crochê, dentre outras formas.
Percebe-se, nos poucos exemplos [há muito mais] que nenhuma rigidez é imutável na regra ortográfica, como também não é na vida. E a língua é personificada na vida das pessoas, pelo uso, pela significação, pelo contexto histórico e pela tradição. E, dessa forma, uma inovação pode ser rejeitada (por alguns, pelo menos) se parecer não-funcional ou eventualmente menos elegante que uma forma/sentido já existente, bem ao gosto da comunidade, enraizada entre seus membros, que tenha ganhado a força da tradição.
Por tudo isso, as Ciências Humanas, por mais magníficos e atraentes que sejam seus argumentos lógicos e dialéticos, não propiciam arcabouço seguro para tirar dessa terra acreana o seu gentílico consagrado. Assim, é imperioso a Academia Brasileira de Letras preservar as duas variantes. A primeira, porque carrega a história da saga acreana e traduz, de forma plena, o gentílico da pessoa nascida no Acre. A segunda, porque se ajusta aos preceitos de estudiosos consagrados, que já registram a variante, há bastante tempo, em suas obras lexicográficas.
Concluindo, diz-se que a importância de ser acreano confunde-se com o próprio sentido do mundo em que se vive. Pois mais que um ecossistema, região ou bioma, mais que a porção mais verdejante do planeta, o Acre é um poema. E a linguagem -- como diz Fernando Pessoa -- fez-se para que nos sirvamos dela, não para que a sirvamos a ela.
DICAS DE GRAMÁTICA
POR QUE USAR A LETRA H SE ELA NÃO REPRESENTA NENHUM SOM?
Realmente ela não possui valor fonético, mas continua sendo usada em nossa língua por força da etimologia e da tradição. Emprega-se o H quando etimológico: horizonte, hulha, herbáceo etc, mas por tradição escreve-se erva e não herva.
Emprega-se, também o h no meio do substantivo próprio Bahia (Estado do Brasil), por tradição.
*É Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montréal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; Membro da Academia Brasileira de Filologia: Membro da Academia Acreana de Letras.
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